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  2011 PERFIL 

 
Perfil: As normas de Norma
Leia o perfil delicado de uma avó, feito com muita sensibilidade pela neta.
Por Joyce Salles Barreto
O despertador do celular toca debaixo do travesseiro. O ronco que mais parecia um motor de carro é interrompido pelo susto. As vistas embaçadas visualizam 9h30 – ultimamente ele tem tocado nesse horário.

Hoje não há muito que fazer. É domingo, está tão frio que a janela mesmo fechada se balança pelo vento que sopra lá fora.



Depois de na semana toda ter lavado e passado as roupas, ter feito a comida, ido à feira e limpado a casa, o dia reservava para visitas. Pelo menos uma vez por mês é preciso ver os irmãos que moram em outra cidade.



São quase duas horas de viagem em um ônibus que balança tanto que dá impressão de estar no meio de um terremoto. Só de pensar dá preguiça de se levantar.

Os bocejos dão sinal de que o sono ainda incomoda, mas a força de vontade sempre é maior que a aparência do corpo cansado. Apesar de a pele ser bem enrugada e queimada de tanto sol, quem a vê na rua não lhe dá mais que 60 anos de idade.

A genética jovial da família nunca foi empecilho para não ter vaidade. Todos os dias, um palmo bem cheio de um creme branco é espalhado pelo corpo e fica cheirando a rosas.



Ai de quem falar que ela está velha ou com alguma dificuldade da idade, Norma não gosta nenhum um pouco, seus 80 anos são meros números ganhados na vida. Ela se acha nova e disposta, se diz melhor que muitas mulheres de 20 aninhos por aí.

O problema é quando o corpo não corresponde com a mente.



Ela se levanta devagarzinho, senta na cama e tateia o criado mudo ao lado. O quarto está escuro e os olhos inchados dificultam enxergar os óculos bem em cima do rádio.

Rádio que passou ligado a madrugada toda ao som de chorinhos e valsas, seus tipos de músicas preferidos. Quando não é o som do pequeno rádio preto, é a luz da televisão sintonizada em um canal de religião.



Muito católica, quando não vai à missa, passa boa parte do tempo vendo canal de padres e bispos, rezando e falando sobre Deus e boas coisas.

Calçando os chinelos de pelo azul e vermelho, típico das vovós, ela não os dispensa, pois o conforto deles ameniza a dor nos pés. Pés que já estão cansados de tanto trabalho e que hoje podem descansar melhor, mas já não são mais os mesmos depois que apareceram joanetes e os segundos dedos pododáctilos, que foram para cima dos primeiros.



O problema nos pés é “ficha”, nada abala a força que ela tem de viver. Assim, devagar em seus passinhos, ela sai arrastando a pelúcia até o banheiro.

Já no café da manhã, prepara seu leite em pó e um cafezinho instantâneo, passa margarina no pão amanhecido. – Mastiga devagar, enquanto dá uma golada no café com leite, duas coisas das quais ela não fica sem.



No almoço pode ser feito qualquer coisa para enganar o estômago, mas pão e café com leite não saem da mesa. As beliscadas neles são sagradas pelos menos duas vezes ao dia.



Ali, em cima da mesa da cozinha, também ficam um pequeno copo de vidro com água, uma bolsinha de remédios, um caderninho e uma caneta.

Retira da bolsinha dois de seus remédios matutinos, joga-os de uma vez na boca e rapidamente toma a água.

A mão enrugada com manchinhas marrons apanha o velho caderninho amarelado e a caneta vermelha sem tampa anota o horário em que tomou o remédio. Lá as anotações são além de horas, ficam também lembranças de tudo o que foi e o que é preciso ser feito.



Ela vira a folha do caderninho de lembranças e lá esta uma: “aniversário do meu neto Bruno”. Aconteceu na semana passada e lá estavam os escritos na cor vermelha, com as letras tortas e algumas palavras sem acento, até mesmo erradas.

Norma dos Santos, a Dona Norma, a mãe, a vó, ou apenas a Norma, tem quatro irmãos, três filhos e oito netos. E o recém chegado bisneto, único bebê da família, tem apenas cinco meses de vida, olhinho verde, pele branquinha, gordinho, parece um boneco, daqueles cheios de dobrinhas que ficam em cima dos caminhões.



Só estudou até a quarta série, é a mais velha dos irmãos e apesar da dificuldade que sempre teve com os estudos, o fato é justificado pela dedicação que teve com a mãe ao cuidar dos irmãos e do lar, já que o pai era caminhoneiro, mal ficava com a família para trabalhar e sustentar a casa. Felizmente toda sua dedicação fez seus filhos serem bons e terminarem os estudos, hoje em dia todos têm filhos e emprego.



Exceto por um dos filhos, Norma teve o maior sofrimento que uma mãe pode ter na vida, a perda. Humarat era o caçula, faleceu após um acidente de trabalho. Algo que sempre será lembrado sem precisar de um mero caderninho.

Norma então começa a se vestir para sair. Veste um vestido de listras alviverdes que vai até os pés, brincos e colar de bolinhas combinam com sua roupa. Uma de suas roupas prediletas, pois combina com sua pele morena jambo.



Penteia os cabelos curtos tingidos de loiro dourado e para realçar passa um batom vermelho da cor melancia. Não sai sem passar um pó no rosto, precisa esconder as rugas. Coloca os óculos escuros, pendura uma enorme bolsa bege nos ombros e sai rapidinho descendo as escadas no sapatinho de laço e paetê marrom.

No ponto de ônibus, após 40 minutos de espera, faz sinal com a mão, entra e mostra sua carteira de identidade que indica – Nascimento: 25 de setembro de 1930.



Acomoda-se em um dos assentos do meio, pois na frente fica longe da porta e atrás balança muito.

A cada pausa, o ônibus vai enchendo – ao lado de Norma senta uma moça baixinha, morena de uns 40 anos de idade e assim começam a conversar.

- Que milagre conseguir um assento livre nesse horário no ônibus, puxa papo a moça.

Norma concorda e outros papos surgem.

Enfim chega ao destino. Despede-se da moça, desce do ônibus, caminha três quadras e chega à casa dos irmãos.



O portão vermelho desbotado e enferrujado faz um ruído tão grande ao abrir que nem é preciso avisar quando entra.

Logo na sala, o irmão Carlos está sentado, ouvindo o jornal na televisão Ela cumprimenta e pergunta como está o olho. Carlos há pouco tempo sofreu um acidente de caminhão quando estava viajando com um amigo. Com a pancada perdeu a visão, enxerga somente vultos, mas dá graças – Dos males o pior, diz.



Vai adentrando à casa, na cozinha está Izolina, 74 anos, morena dos cabelos grisalhos, vem se apoiando na bengala e arrastando as pernas inchadas, nem se incomoda com a velhice, diferente da irmã.

Elas sentam-se à mesa da cozinha e começam a colocar o papo em dia enquanto cortam frutas para fazer uma salada. Relembram os velhos tempos...

Norma casou-se aos 25 anos de idade, bem velha para época. Seu marido era Hildo. Era, porque depois de quase 30 anos de casados, ele foi embora com outra mulher.

Norma foi ensinada pela mãe a ser uma boa dona de casa, dos anos que ficou casada, até hoje, filhos e netos e até mesmo qualquer um que precise, podem contar com sua ajuda.



Sempre foi uma cozinheira de mão cheia, seus doces e quitutes são a alegria dos netos. Foi assim que ajudou seu marido. Numa perua Kombi branca, de sol a sol vendia doces nas portas de escolas.

Após horas de papo, Norma se prepara para ir embora – despede-se dos irmãos e novamente vai “viajar”.

Não dormiu na casa dos irmãos porque adora ficar no seu cantinho. Norma tem personalidade forte, é tinhosa e bem teimosa. Não gosta que ninguém mexa nas suas bagunças.



A noite cai, hoje não é dia de passar suas novelas na TV, está muito cansada, então se prepara para dormir.

Veste uma calça preta, meias e uma blusa branca qualquer, puxa sua manta de lã e bem quentinha adormece - amanhã é outro dia, a filha mais velha precisará de sua ajuda para fazer o almoço.