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Superando obstáculos
O que acontece se um piloto de Stock Car for portador da Síndrome de Tourette?
Por Por Amanda Albuquerque
Fotos: Divulgação
Não era a primeira visita de Eloá nos boxes da Stock Car. Por sinal, ela já tinha ido três vezes: uma em Curitiba, outra no Rio de Janeiro e, finalmente, em São Paulo. Essa última vez, na Selva de Pedras, no Autódromo de Interlagos, Eloá conseguiu passar mais tempo com seu primo Júnior, a quem chama carinhosamente de Zú. As outras vezes ela teve que ficar perambulando sozinha com seu marido Benício, mas nessa corrida, Zú pôde dar mais atenção ao casal de primos. Ele trabalha com publicidade na Stock Car e tinha acabado de conseguir mais um piloto. Estava todo ansioso para apresentá-lo aos primos. Eloá acompanhava a excitação do priminho que tem 1,95m de altura com muita dificuldade. O barulho do autódromo era ensurdecedor, mas pôde ouvir algumas frases:

– Querem conhecer meu novo piloto, o Andrézinho?

– Claro, Zú!

– Então venham cá, mas tenho que avisar uma coisa antes. - disse Júnior com seu forte sotaque carioca

– Ele tem um probleminha, ele... – Eloá até tentouentender, mas os carros da corrida principal tinham acabado de passar por ali.

– Hein, Zú?

– O Andrézinho tem um... - os carros que ficaram pra trás tinham passado por ali. Eloá não insistiu.

Passando pelos boxes, chegaram numa garagem toda verde, com o logotipo de trevo de quatro folhas da HOPE – Recursos Humanos. Júnior pediu que esperassem. Logo ele voltou com um homem baixo, de cabelo curto e escuro e um rosto simpático. Por sinal, um rapaz simpático. Conversa boa, sorridente... mas ele tem um tique. Um tique constante. Ele pisca muito os olhos. Um tique, não: dois. Ele estica o braço esquerdo pra frente diversas vezes. Três. Ele puxa a perna direita um pouco pra dentro. Quatro. Parece que ele engrena a marcha, talvez seja realmente só um tique de piloto. Cinco. Ele

emite uns grunhidos durante a conversa. Mais! E constantes!!! Ele faz tudo isso junto!

Eloá começou a olhar com mais indiscrição, sentindo-se um tanto vermelha por ficar encarando. Sua mãe, Grecilda, dizia para não encarar, que é feio. Ela olhava pra cima, pros lados... mas ainda assim! Ele piscava os olhos!

- Zú... ele tem Tourette! - exclamou Eloá pasmada depois que André voltou para dentro do box.

– Tem! Eu te avisei que ele tinha um probleminha.

– Júnior! Ele tem disfunção motora! Como alguém que tem disfunção motora pode ser um piloto????

– Não sei, Eloá, só sei que quando a adrenalina cai no sangue dele tudo fica bem! O cara é bom!

E tinha que ser bom mesmo! Foi nesse mesmo dia que o acidente mais trágico da história do Stock Car brasileiro aconteceu.

Foi um dia de festa para a família de Rodrigo, ele havia chegado em segundo lugar na corrida principal, depois de Cacá Bueno. A árvore genealógica toda estava assistindo à corrida do seu irmão Rafael Sperafico na Stock Car Light. Dali, iriam sair todos juntos para festejar. E foi quando todo Interlagos ficou no mais profundo e tétrico silêncio. O carro de Rafael bateu contra a murada destruindo-se completamente. Os destroços rodaram para a pista, pegando vários carros e causando ainda mais acidentes. Foram poucos os pilotos que conseguiram passar por ali. Sperafico morreu na hora de traumatismo craniano. E, no meio do acidente, um carro verde com um trevo de quatro folhas da HOPE – Recursos Humanos passou raspando por um destroço e saiu ileso. O carro de André Bragantini. Talvez o trevo tenha dado sorte, mas foi André que deu a perícia. Inquestionável.

O que Eloá não tinha conhecimento é que André sabia muito, mas muito bem o que estava fazendo. Ele não caiu de pára-quedas nas pistas.

Desde que ele era criança, seu pai, que também se chama André, trabalha na RC –Competições, uma empresa que atua na produção das corridas. Além disso, o sangue Need for Speed já corre nas veias da família Bragantini há gerações. Seu avô foi piloto. Seu tio foi um piloto famoso das décadas de 70 e 80. Por que ele não seria piloto também? Aliás, o que o impediria? André só foi saber que possuía a Síndrome de Tourette aos 25 anos! Por todo esse tempo ele pensou que apenas tinha uns tiques ou cacoetes nervosos.

Desde cedo Andrézinho, como frequentemente é chamado devido à sua estatura, ia às corridas acompanhando seu pai. Ele já era conhecido no meio automobilístico, tanto por causa da família como por sua contagiante simpatia. Todos sempre gostaram muito de sua companhia e das conversas. Nem reparavam que ele mexia demais as sobrancelhas. Na sua infância, André não tinha tantos tiques. Ele só mexia as sobrancelhas para cima compulsivamente. Mais tarde, crescendo um pouco mais ele começou a puxar a cabeça para trás. Isso nunca atrapalhou! Ele continuava indo ao Shopping Morumbi jogar fliperama com seus amigos, todos também envolvidos com automobilismo. Os tiques pioraram com o tempo. Parecia que a cada ano ele ganhava um novo de aniversário. As sobrancelhas, a cabeça, o braço direito que passava marcha continuamente... mas ele ainda ia ao Shopping Morumbi, agora adolescente, para levar sua ainda namorada Joyce.

A grande decisão de se tornar piloto já era até esperada pela família e pelos amigos. Nunca lhes passou pela cabeça que ele seria outra coisa além disso e nem que essa disfunção neurológica poderia afetar seu desempenho ou colocar sua vida e a dos outros pilotos em risco. Não! Não o André! Isso nunca foi um problema, nem um pensamento! Seria até esquisito se ele virasse para a família e dissesse "quero ser médico, dentista, advogado" ou coisa do tipo. Ele nasceu para ser piloto! Todos sabem!

Seus pais se preocuparam só o suficiente que pais normalmente se preocupam, assim como Eloá se preocupará quando sua filha decidir dirigir. Na verdade, não tem muito com o que se preocupar. André é responsável, nem quando sai com os amigos ele se comporta de uma forma mais irreverente. Apesar de gostar de música eletrônica, ele não freqüenta baladas e nem bebe ou fuma. É um rapaz correto. Mas tem aquele tique...

Os anos passaram e nada impediu André de correr. Como não nasceu em berço de ouro, teve que lutar por patrocínio como todos os pilotos. Ninguém nunca duvidou da capacidade dele, era só vê-lo dentro do carro para ter certeza que ele era muito bom no volante. As equipes e outros profissionais não ligavam para os tiques dele, nem quando eventualmente tinha algumas convulsões. Mas o público, quando tinha acesso aos boxes, e até mesmo as pessoas nas ruas achavam que era uma "forma de chamar atenção". Ele desenvolveu um tique vocálico que parece que ele ta chamando alguém. No meio da conversa ele fala uns "ow, ow, ow..." que realmente parece que ele quer que as pessoas olhem para ele, mas não quer. Até hoje André se lembra dos médicos que freqüentou sem achar nenhuma resposta. Estava já preocupado, afinal, como tem medo de voar, às vezes tremia a poltrona do avião, fazendo com que a cadeira da frente tremesse junto.

Descobrir a doença foi só um passo. A Tourette nunca o atrapalhou de verdade na vida. A síndrome não o impediu de correr.

Mas impediu de morar.

André teve uma surpresa muito desagradável quando soube que os moradores de seu condomínio queriam que ele saísse do prédio. Diziam que ele "assustava as crianças", que ele "fazia barulhos". Foi uma vergonha para o Paraná! Isso deixou André muito decepcionado! Ele nunca foi deixado para trás! Nem nas corridas isso ocorre muito, ele é vice da Light e acabou de subir para a categoria principal! Mas não o derrubou.

O ano de 2008 começa e ele já deu mais um passo em direção à cura. Acabou de colocar um chip no cérebro para controlar os tiques, pelo menos os vocálicos. Alguns dizem que não melhorou nada, mas os amigos dizem com certeza que já houve melhora. Não que o próprio André se incomode muito com isso. Ele sempre responde educadamente a quem pergunta sobre a síndrome, já está acostumado. Ele aprendeu a controlar a Tourette na presença da imprensa ou de pessoas estranhas. Podem achar que na frente dos amigos e da família ele se sente mais calmo e, portanto, tem menos tiques, mas é justamente o oposto. Com aqueles que André ama e confia ele relaxa e não precisa mais conter os impulsos, ficando com tiques mais freqüentes e fortes. Mas, pode ser que, agora com esse chip, esses impulsos fiquem cada vez mais fracos e as pessoas comuns passem a vê-lo apenas como André Bragantini, um piloto de Stock Car muito competente e querido por todos que o conhecem.



Síndrome do Tourette:

• A Síndrome de Tourette é um distúrbio neurológico ou “neuro-químico” que se caracteriza por tiques – movimentos abruptos, rápidos e involuntários - ou por vocalizações que ocorrem repetidamente com o mesmo padrão.

• Esses tiques motores e vocais mudam constantemente de intensidade e não existem duas pessoas no mundo que apresentem os mesmos sintomas.

• A maioria das pessoas afetadas é do sexo masculino.

• Geralmente começa a se manifestar na infância ou juventude, até que atinge estágios classificados como crônicos.

• Até hoje ainda não foi encontrada uma cura para a Tourette.

• Tratamentos médicos existem para amenizar os sintomas da síndrome.