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Não, não me apaixonei pelo tempurá
Repórter da revista Nação foi ao bairro da Liberdade, em São Paulo, procurar as origens e as curiosidades da cultura nipônica no Brasil
Por Paula Furlam
Nunca fui a maior admiradora da cultura japonesa, mas como curiosa e compradora quase compulsiva de bugigangas, comecei as minhas incursões pelo bairro da Liberdade, em São Paulo, há quase dois anos. Continuam até hoje, com uma regularidade quase britânica.

Não que o bairro me fosse um total desconhecido — acho que é impossível para quem mora em São Paulo nunca ter ao menos passado por lá. Mas o meu contato com a Liberdade não se aprofundava mais que rápidas passadas pelas grades vermelhas do viaduto que passa pelo bairro.

Ao falar da Liberdade é automática a associação à cultura japonesa, às pilastras vermelhas e às luminárias suzuranto que iluminam as suas ruas. Mas a Liberdade só se tornou um bairro genuinamente japonês em 1969, proposta feita pelo jornalista Randolfo Marques Lobato, que queria dar uma imagem orientalizada ao local, a exemplo de Chinatown, em Nova Iorque, e atrair visitantes e turistas.

Mas antes dos japoneses tomarem para si aquele que é o maior expoente nipônico na cidade que tem o maior número de japoneses fora do Japão no mundo, o bairro era predominantemente italiano. A buona gente morava em pensões baratas pelo bairro e trabalhava nos cafezais que outrora dominavam a paisagem que hoje é repleta do vermelho típico da terra do sol nascente.

A ocupação oriental da Liberdade não foi exatamente algo estrategicamente planejado, como nas histórias e contos de bravos samurais. De fato, ela ocorreu quase que aleatoriamente, pelo custo baixo das suas moradias. Alguns imigrantes japoneses, coreanos, chineses e vietnamitas que aqui chegaram e foram trabalhar nas lavouras do interior do estado não se adaptaram e resolveram procurar em São Paulo um lugar para ficar. E nada melhor para recém-chegados fugidos da guerra do que um lugar promissor e de baixo custo. Começaram aos poucos a se instalar na região.

Mais japonesa que o próprio Japão? - A nissei Mariana Ota diz que a Liberdade reflete mais a estética japonesa do que muitas cidades no Japão. Mariana passou cinco meses na terra dos pais em 2004 e é moradora da Liberdade desde os 3 anos. “Meus pais são muito tradicionais, prezam demais os preceitos seguidos desde os tempos dos avós dos avós dos avós deles, por isso decidiram morar aqui, onde era possível viver o modo de vida que eles realmente estavam acostumados”.

E não é exagero de Mariana quando ela diz que na Liberdade pode-se levar um estilo japonês de vida. Os produtos típicos para culinária, higiene pessoal e mesmo artefatos e utensílios estão por todas as partes e podem ser comprados a cada esquina.

As peculiaridades não terminam por aí. Nas bancas de jornais iluminadas pelas simpáticas lamparinas brancas pode-se encontrar algumas publicações em japonês - umas importadas e outras produzidas aqui mesmo no Brasil.

Mas apesar de tudo o que difere a “Liba” — como muitos chamam carinhosamente o bairro — dos outros bairros não se pode esquecer de que ela está cravada no coração do centro da mais frenética megalópole do maior país da América Latina.

É quase surreal se confrontar com um jardim japonês no meio do furor do comércio do centro paulistano. A mistura de japonês e português não se vê apenas nas placas, cartazes e impressos espalhados pelo bairro, mas também nas conversas pelas ruas, em algumas tradicionais casas de karaokê, nas propagandas de shows, óperas e peças de teatro em japonês ou apresentadas por artistas do Japão, nas videolocadoras que veiculam filmes genuinamente japoneses, que vão desde os tradicionais animes até os filmes do gênero yakuza, sobre a temida máfia japonesa.

A repressão - O dono de uma banca de jornal no começo da Rua da Glória, Matsuo Hiraki, de 77 anos, diz, em português quase ininteligível — muitas vezes auxiliado por seu funcionário Antônio, que nem sempre a convivência foi assim tão pacífica. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Japão se aliou aos nazistas e aos fascistas, ele disse que a perseguição aos japoneses foram intensas, inclusive após o fim da guerra, quando alguns inconformados com a derrota ameaçavam quem se resignasse a ela.

Nesta época, Hiraki era ainda uma criança e não se lembra exatamente do que ocorria, apenas das histórias contadas por seu pai, que ficou viúvo da mãe de Matsuo durante a viagem para o país e que ele reproduz com saudosismo de um senhor da sua idade e a empolgação da criança que ele era quando tudo aconteceu.

O sushi nosso de cada dia - Como eu disse anteriormente, a cultura japonesa nunca me despertou tanto interesse quanto algumas outras. Isso também acontece com a culinária, que para uma autêntica descendente de italianos, acostumada a queijos, molhos, carnes e temperos, muitos temperos, sempre pareceu suave demais.

Por isso, me despi de quaisquer preconceitos que eu pudesse ter quanto à culinária nipônica, especialmente em relação aos peixes crus salmão com salmonella não é exatamente meu sonho de consumo.

Tentei fugir ao máximo dos clichês, mas comecei pelo tradicional tempurá. Primeiro fui à barraca de tempurás — que fica do lado de uma barraca que vende acarajé. Na saga do tempurá fiquei pelo menos uns 20 minutos, olhando as expressões de quem comia, sentindo cheiros e ouvindo possíveis opiniões casuais sobre a iguaria. Quando estava quase desistindo vi uma menininha de uns 3 anos quase se jogando no chão por um tempurá — nome que a criança não conseguia pronunciar. Foi o suficiente para me convencer a experimentar o tempurá preparado pela mineira Ana Mendes, que há dois anos trabalha na Feirinha da Liberdade e não tem ascendência japonesa alguma.

O nome da menininha é Amanda. A mãe, a ortodontista Marisa Genaro, diz que a paixão da filha pela guloseima começou provavelmente ainda no seu útero. Marisa conta que durante a gravidez teve um estranho desejo por tempurá quando passava pela Avenida Paulista. Ela jamais havia experimentado antes e após ter sido aguçada, achou seu objeto de desejo na Feirinha da Liberdade. Foi o começo de uma saborosa história de amor, que hoje é perpetuada com a pequena Amanda que insiste para que a mãe compre o “pastelzinho”.

Agora é a hora em que qualquer leitor provavelmente espera do texto uma paixão instantânea pelos legumes cuidadosamente fritos e aroma inconfundível do tempurá.

Mas não deixemos que a história fique tão mexicanamente dramática.

Não, não me apaixonei pelo tempurá. Mas percebi que a diferença entre brasileiros e japoneses, entre América Latina e Extremo Oriente, pode ser transposta em diversos níveis.

O temperamento sangüíneo do nosso sangue latino está para os sabores fortes e rústicos — a exemplo da feijoada — bem como a serenidade e disciplina dos japoneses está para seus sabores sutis e delicados.

O metrô Liberdade - A estação Liberdade da linha azul do transporte metropolitano é uma curiosidade à parte, que não apenas serve como meio de transporte. O lugar também funciona como ponto de encontro de adolescentes metaleiros, clubbers e otakus, que muitas vezes aparecem vestidos como seus personagens preferidos dos quadrinhos japoneses, prática esta que é chamada cosplay. Eles se divertem jogando RPG, jogando conversa fora e tomando vinho barato aos fins de semana, especialmente aos domingos.

Além do Sol Nascente - Mas nem só de japoneses se faz um bairro oriental. Especialmente quando este está localizado em um caldeirão onde diversas culturas fervilham e se misturam num caldo heterogêneo.

A Liberdade é, sim, um bairro genuinamente paulistano, apesar de seus domingos substituírem por aromas de frutos do mar, molho shoyu e gengibre o cheiro das macarronadas — que já foram oficialmente adotadas como o prato de domingo do paulistano.

A costureira paranaense Celina Theresa Mattos foge ao paradigma de habitante do bairro. Ela não é nissei. Não é sansei. Não tem uma linda história de amor com um japonês que fugiu da guerra direto para os seus braços.

Celina ganhou a Liberdade há exatos 30 anos, quando o falecido marido que era oficial do exército foi transferido de cidade. "Acompanhei de perto o crescimento do bairro, vi este pedacinho de lugar se transformando na imensidão de hoje". Ela se refere ao fato do bairro, que era essencialmente residencial, ter se tornado um expoente do comércio, bem como o resto do centro da cidade.

De qualquer forma, é válido visitar este pedaço de São Paulo que representa não apenas a história dos imigrantes japoneses, mas a própria história da imigração no Brasil. E para quem quer viajar e não pode sair do País, é uma garantia de contato intenso com outra cultura — praticamente um curso de imersão na cultura e hábitos japoneses, onde pode se ver como eles comem, lêem, fazem propaganda, vivem e se divertem.

Os imigrantes japoneses já não estão tão concentrados na Liberdade, que ultimamente tem recebido um número considerável também de coreanos, mas a tradição japonesa pode ser respirada em cada centímetro desde lugar que mistura a cultura milenar e o conceito de aldeia global com sutileza e pragmatismo.

Termos

1 – Suzuranto — Lanternas típicas japonesas.

2 – Chinatown — Bairro oriental de Nova Iorque, o mais conhecido do mundo.

3 – Nissei — Filho de japoneses.

4 – Otaku — Em japonês, qualquer pessoa fanática por algo. No Brasil, é como são chamados os fãs de manga e anime.

5 – Sansei — Netos de japoneses.