Home
Sobre
Equipe
Email
Edições

  Cultura  -  1968 - Política, Comportamento, Cultura

 
A tortura virou arte
O prédio símbolo da repressão é reaberto para mostrar as marcas de uma época que se deve esquecer
Por Bruno Quiqueto
De repente, vozes vindas de fora, ecoando pelos corredores estreitos. Alívio. São apenas os visitantes curiosos. A água pingando de um cano força a lembrá-lo do suor escorrendo do corpo de indivíduos agredidos, fatigados e jogados nas profundezas de um calabouço. A Delegacia de Ordem Política e Social — o Dops — produziu cenas de terror que deixaram cicatrizes na história. Hoje, a tranqüilidade do local não se compara, nem um pouco, com o passado recente, com a paúra que rondava e compunha o ambiente. Restauradas em janeiro de 2002, as suas dependências estão abertas ao público para visitação, em São Paulo.

Criado durante o Estado Novo 1937-1945, no governo Getúlio Vargas, o Dops foi instalado em todo o território nacional, com o objetivo de vigiar e punir políticos, intelectuais, escritores, jornalistas, estudantes, comunistas, camponeses, enfim, todos os que estivessem sob a mira da polícia política. Depois de 1964, passou também a receber presos do DOI-Codi Departamento de Operações Internas — Centro de Operações de Defesa Interna. Outro período de grande atividade do órgão foi a partir da assinatura do AI-5, em 13 dezembro de 1968. De acordo com o jornalista e escritor Elio Gaspari, em A Ditadura Escanrada, o governo militar brasileiro 1964-1985 ordenou, estimulou e defendeu a prática da tortura como resposta à ameaça terrorista dos grupos de esquerda.

Prédio do medo - Durante os anos de 1964 a 1970, o Dops era o órgão repressor mais temido pelos subversivos. "Era quem torturava e matava em nome da democracia deles militares", diz Moacir de Oliveira, ex-integrante do Partido Comunista Brasileiro e do Sindicato dos Metalúrgicos. Ele ficou preso por pelo menos 20 dias no Dops, depois de ser transferido do DOI-Codi, onde fora torturado. Nas torturas eram utilizados aparelhos de choque elétrico, pregos, além de outros artifícios. "Você ia nu e de capuz, para não ver quem estava te torturando. Eu apanhei bastante no pau-de-arara. Carrego uma cicatriz na perna até hoje", conta Oliveira. Depois de ser solto, em janeiro de 1976, ele seguiu a carreira política e foi vereador de Santos por 16 anos.

Os agentes do Dops estavam espalhados. "Tenho certeza de que nas reuniões que fizemos para a criação da Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo, no Colégio Santista, tinha agentes do Dops", lembra a ex-deputada Mariângela Duarte. As reuniões para a criação da subsede da Apeoesp em Santos foram planejadas entre 1974 e 1978: "Eles, os agentes infiltrados, tiravam fotos e observavam tudo". Durante os anos de chumbo, Mariângela foi professora de Literatura e Línguas na Universidade Católica de Santos e membro do Movimento Democrático Brasileiro MDB, partido de oposição ao governo.

Nas celas restauradas do Dops, a lembrança de um período trágico. O frio arrepiante, proporcionado pelo ar climatizado traz à tona o clima sombrio e agonizante. Homens e mulheres separados. Cada cela chegava, às vezes, a abrigar mais de 50 presos. "Quando ouvíamos o barulho das portas se abrindo era um terror. Ninguém sabia quem ia sair e se ia voltar", relata Ivan Seixas, ex-preso político ligado a um partido armado clandestino.

As marcas deixadas nas paredes pelos presos que por ali passaram foram pintadas de cinza-escuro. “Nós não queremos isso, que a história seja esquecida, nós queremos uma referência das celas do Dops para que elas nos mostrem o que foi aquela época”, criticou, na época da inauguração do museu, o secretário de Cultura do Estado, João Sayad.

Apesar de muita gente acreditar que existiam porões no Dops, as celas e as salas de tortura ficavam no térreo do edifício. O muro do lado de fora da janela era alto e cobria a visão, fazendo com que a luz do sol viesse de cima, dando a ilusão de os presos estarem num porão. Outro motivo que leva ao engano era porque os recém-chegados passavam pelo primeiro andar e só depois desciam para as celas.

Durante os anos em que o Dops esteve em atividade, 50 mil pessoas foram encarceradas e mais de 20 mil foram torturadas. Os arquivos guardam mais de 180 mil fichas. Indivíduos de todas as classes sociais morreram. Está tudo fotografado e documentado. "O Dops representa um buraco na política brasileira durante a ditadura. Esse tipo de coisa não pode voltar nunca mais”, alerta Moacir de Oliveira.

A tortura virou cultura - Na entrada do atual prédio do Dops, o visitante pode ver uma exposição fotográfica, intitulada "Direito à Memória e à Verdade — A Ditadura no Brasil: 1964-1985". Seguindo adiante, quatro celas foram totalmente restauradas. Cada uma mede aproximadamente dez metros quadrados, com duas janelas no fundo, cercadas de grades de ferro. Uma porta de madeira maciça, com fechadura que lembra um antigo castelo, com duas portinholas — uma na altura do rosto e a outra logo abaixo, que servia para a passagem de comida e objetos. Ainda no fundo, separado por duas paredes de alvenaria, a reforma removeu o local onde ficavam o chuveiro e o vaso sanitário. Do lado de fora, um estreito corredor onde presos tomavam banho de sol podia ser visto por uma das janelas das celas.

"Eu emagreci dez quilos aqui dentro. Não andava mais, perdi totalmente o equilíbrio. Foi terrível. A gente não calculava a violência que era aqui dentro". Este é o depoimento de Elzira Vilela, ex-prisioneira do Dops e presidente do grupo "Tortura Nunca Mais", desde 1999, em seu vídeo no Memorial da Resistência. Esse e outros depoimentos podem ser vistos, assim como os números de prontuários e dossiês, que estão à disposição nos equipamentos de informática. O acervo ficou sob a guarda da Polícia Federal de 1983 a 1991, quando foi entregue à Secretaria de Cultura do Estado. A comissão de familiares de mortos e presos desaparecidos teve acesso aos documentos de 1991 a 1994, quando todo o acervo ficou aberto para a consulta pública.

O material pode ser encontrado no Arquivo Público do Estado, Secretaria da Casa Civil, na Rua Voluntários da Pátria, 596, em São Paulo. O Memorial da Resistência, ou Museu do Dops, antes se chamava Memorial da Liberdade. Devido à pressão de ex-prisioneiros, que consideraram a palavra Liberdade inadequada para o local, teve o nome alterado.

A história do prédio - O prédio do antigo Dops foi planejado pelo arquiteto Ramos de Azevedo e construído em 1914 para sediar a Central de Ferro Sorocabana, para sediar seus armazéns gerais e escritórios administrativos. Em 1924, foi criado o Departamento Estadual de Ordem Política e Social – Deops, que na década de 1940 passou a se chamar Dops.

Com a extinção do Dops em 1993, o prédio passou a abrigar até março de 1998 a sede do Departamento de Defesa do Consumidor. Atualmente também é usado como sede da Pinacoteca do Estado de São Paulo, no Largo General Osório, 66, Luz. Telefone: 11 3324-1000. O local pode ser visitado de terça a domingo, das 10 às 17 horas.

Arquivos - Cerca de 1,5 milhões de fichas e 163 mil pastas 1924-1983

Prontuários: 150 mil pastas e 182 mil fichas

Dossiês: 9626 pastas e 1,1 milhões de fichas

Ordem Social: 2312 pastas e 115 mil fichas

Ordem Política: 1582 pastas e 120 mil fichas