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Cultura - 1968 - Política, Comportamento, Cultura
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A Era de Aquarius
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Hippies. Cabelos compridos. Roupas coloridas. Maconha. Temas de paz e amor. Misticismo. Protestos. Guerra do Vietnã. Nu. Contracultura. E 40 anos: o tempo que nos separa de Hair |
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Por Gabriela Soldano |
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Hair, a peça escrita em 1968 por James Rado e Jerome Ragni, com músicas de Galt MacDermot, aborda temas como a homossexualidade, masturbação, drogas e a contracultura. Logo na estréia, o musical tornou-se uma bandeira dos pacifistas contrários à Guerra do Vietnã. The Age of Aquarius A Era de Aquarius é uma das músicas que ficaram famosas com a peça, celebrando a utopia de que todos, sob a mesma terra, festejarão o amor, que será a única forma de expressão da sociedade.
Na peça, os personagens usam roupas coloridas e repletas de flores. Os homens têm cabelos compridos e despenteados e, às vezes, a barba longa, para refletir a rejeição e a indignação à aparência burguesa. Já as mulheres têm uma aparência natural: cabelos longos, soltos, encaracolados, despenteados.
A estréia brasileira de Hair, em 1969, foi no Teatro Aquarius, em São Paulo hoje Teatro Zaccaro, durante a fase mais dura do regime militar: o AI-5 acabara de entrar em vigor. A direção musical foi de Cláudio Petraglia, a coreografia de Márika Gidali e a tradução das músicas para o português de Renata Pallotini. Ademar Guerra foi o responsável pela iniciativa de montar o espetáculo. Associado ao produtor Altair Lima, eles tiveram de vencer o preconceito dos empresários teatrais que achavam impossível montar o musical no Brasil.
Nus por um minuto- A peça teve ainda de enfrentar uma censura rígida, pois todos os atores apareciam no palco completamente nus. Após longa negociação, os censores concordaram que em apenas uma cena a nudez seria permitida. Todos os atores teriam de ficar imóveis no palco, durante um minuto, tempo negociado com a censura. Por esta razão, a cena da nudez teve um tratamento sensível e delicado e é lembrada até hoje pelo público e pela crítica.
O escritor e crítico literário Flávio Viegas Amoreira acha que a polêmica da peça vai além do nu. Para ele, era a sensualidade e a provocação intimidante e subversiva exercida pelo corpo em relacionamentos não-convencionais que provocava polêmica na peça. “Ademar Guerra teve de aceitar o nu estático. Isso prova que, para a censura, a genitália em movimento teria apelo tão demolidor quanto a Passeata dos Cem Mil, na Avenida Rio Branco, Rio de Janeiro. Até 1968 o mundo era governado por hipócritas a serviço dos ‘bons costumes’”, diz Amoreira.
A montagem brasileira foi também a grande responsável por tornar famosos jovens atores como Armando Bogus, Sônia Braga, Maria Helena, Altair Lima, Benê Silva, José França, Neusa Maria, Marilene Silva, Laerte Morrone, Aracy Balabanian, Gilda Vandenbrande, Bibi Vogel, Acácio Gonçalves, Pingo, Nuno Leal Maia e Ney Latorraca. Mas aos 18 anos, Sônia Braga foi a grande estrela do espetáculo, homenageada depois por Caetano Veloso na música Tigresa: “Uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel”. É essa tigresa que diz a Caetano que tudo vai mudar, cantando o lema da peça: “Porque ela vai ser o que quis, inventando um lugar/ Onde a gente e a natureza feliz vivam sempre em comunhão”.
A funcionária pública aposentada Maria Regina Baptista tinha 21 anos na época do lançamento da peça em São Paulo. Ela relembra quando viu o espetáculo: “A primeira peça que assisti na vida foi Hair. Também foi a primeira vez que vi o nu num palco teatral. Me lembro que saí do teatro encantada, e assim continuo até hoje. A peça mudou a vida de muita gente, porque o que buscávamos, na época, era ser ‘free’. Ao ver Hair, pensei que realmente podia ser livre”.
A montagem santista - Em 2003, o grupo amador de Teatro DNA fez uma montagem de Hair para uma cena de 15 minutos dentro do 7º Fescete, com apresentações no Teatro Municipal Brás Cubas e no Teatro Rosinha Mastrângelo. A cena continha diálogos de várias partes do texto e era centrada, basicamente, na divergência de pontos de vista entre o hippie Claude e seus pais. A direção foi de Ivan da Conceição, com produção da designer Márcia Okida.
“Hair sempre foi uma de minhas paixões. Resolvemos resumi-la e apresentá-la naquele festival. Dirigir a peça foi um imenso prazer”, diz Ivan da Conceição. Carregada nos ombros de um dos atores, Márcia Okida solou no início do espetáculo a música The Age of Aquarius. O restante do elenco fazia a percussão. Eram os hippies invadindo a platéia, cantando e distribuindo flores ao público.
Ivan da Conceição lembra que mesmo não dominando por completo a música, o público se deixou encantar pela cena: “Foi um momento lindo, bem colorido, que conseguiu empolgar a platéia. As canções trazem uma mistura de sons que traduz a miscelânea cultural da década de 60. De alguma forma, a platéia faz uma viagem no tempo quando assiste essa peça”.
Márcia Okida lembra que a reação do público às canções não era esperada pelo grupo: “Foi uma surpresa. Isso porque tinha muita gente jovem na platéia que, talvez, não conhecesse Aquarius. Mas o público cantou junto e foi emocionante. Também cantamos Manchester Inglaterra, Let the Sunshine in e o Hare Krishna”.
Proibido para menores - Assim como na peça original, a montagem santista causou polêmica, isso porque o DNA apresentou a cena de nu. Na ocasião, ocorreu um incidente. Como no teatro houve apresentações infantis naquela tarde, os organizadores acabaram permitindo que o público infantil permanecesse para o espetáculo da noite, apesar da indicação encaminhada pelo grupo DNA alertar que o espetáculo era adequado para maiores de 18 anos, justamente em razão da cena de nu frontal masculino. “As crianças viram a cena, lógico, e alguns pais ficaram indignados com que os filhos estavam vendo”, diz Márcia. Rose Magalhães relembra a impressão do público naquele momento: “Houve um certo horror com a silhueta masculina de Claude nu na última cena”. Ivan da Conceição também relembra a polêmica: “Famílias saíram do teatro revoltadas, nos taxaram de indecentes e outros queriam saber quem era o diretor para ir tirar satisfação”.
Márcia Okida conta por que a cena do nu foi escolhida para a montagem: “Usamos as marcações originais. Hair é famoso por causa da cena do nu, que nem é uma coisa tão exagerada quanto as pessoas pensam. O personagem quer se libertar de todas as amarras, de tudo que a sociedade impõe. E a maneira que ele escolhe para mostrar para os pais que quer ser livre é tirando a roupa e saindo de casa”.
Espera e impacto - A montagem santista também causou expectativas no público. Márcia lembra: “Os outros grupos teatrais estavam ansiosos pela nossa apresentação. Como foi divulgado que a peça seria apresentada, queriam saber o dia e como seria a apresentação”. Ivan da Conceição diz que havia uma certa pressão no ar. “Havia muita cobrança, até de quem já conhecia o texto da montagem da década de 60. Mas acho que soubemos passar muito bem as mensagens da peça e do grupo”.
O DNA teve autorização da tradutora oficial no Brasil da obra, Renata Pallottini, para realizar a montagem inteira de Hair, inclusive com acesso a uma cópia completa do texto original da peça. Ivan da Conceição percebeu que Renata achou interessante que um grupo formado por jovens atores desejasse montar Hair nos dias atuais: “Ela se surpreendeu com nossa intenção de discutir assuntos tão polêmicos, enquanto boa parte das montagens vigentes está preocupada em apenas entreter a platéia”.
O diretor diz que a peça ainda provoca impacto: “Hair sempre causará espanto, pois sexo, drogas, guerra e liberdade individual, entre outros assuntos, dificilmente são abordados tão sem barreiras quanto nesta peça. Não podemos esquecer que dizer não à guerra é, e sempre será, um importante papel dos verdadeiros artistas”.
40 anos depois - O escritor, crítico literário e semiólogo Flávio Viegas Amoreira acha que a obra traduz uma “realidade mais aprimorada”. “Muitos dos personagens de Hair venceram a batalha com o feminismo, os direitos civis, o fim do totalitarismo soviético. Mas e o projeto de igualitarismo num mundo de exclusão? Depois de Ronald Reagan, Margareth Thatcher e George W. Bush quem pode garantir que o Claude, o protagonista da trama, não tenha voltado tão reacionário da guerra quanto o senador John MacCain candidato do partido Republicano à presidência dos Estados Unidos?”. O enredo de Hair mescla esperança com desilusão. As suas letras e melodias ainda soam como o mantra de um ideal sempre desejável, mas cada vez mais distante”.
Flavio Amoreira acha que toda a rebelião comportamental e sociopolítica de Hair foi incorporada ao sistema. “A ‘contestação’ foi repaginada ou incorporada pelo mercado: a nudez deu lugar à erotização exarcebada e vulgarizante o movimento gay foi enquadrado e assimilado pelo poder de compra de seus militantes antes execrados a virgindade é um cômico passadismo mal visto como anomalia e a juventude desmobilizou-se como protagonista coletivo da História em nome do individualismo. Se a nudez não mais incomoda, a miséria nos envergonha”.
Em 2008, 40 anos depois da primeira apresentação na Broadway, o que existe é a moda hippie chic ou new hippie, que nada prega além do uso de couro, pedrarias e faixas no cabelo. Hoje, somente o que temos nas ruas é exatamente o que Hair pregava não aceitar: a “conceitualização”, ou seja, somente pela roupa que usamos ou pela música que escutamos, somos conceituados de certa forma. É a “rebeldia de butique”, sem ideologia.
O escritor Flávio Amoreira cita o filosofo canadense Joseph Heath para explicar isso: “Heath afirma que os ‘hippies chiques’ ou ‘punks de butique’ não são exceções, mas regras. Os símbolos da rebeldia não são apenas cooptados pelo ‘sistema’, mas é a própria contracultura que impulsiona o capitalismo gerando as novidades para a competição entre consumidores. ‘O que está na moda hoje é o que foi alternativo há até bem pouco tempo’, diz Heath”.
Será que teremos que ficar novamente todos nus para nos livrarmos do que nos prende do que nos conceitua? Flávio Amoreira diz que ainda existe a arte para fazer esse papel. “Entendo que para vencer o niilismo só resta a arte: a cultura genuína, o interesse intelectual profundo, denso, não-utilitarista e midiático. Se tivesse que defender uma causa, proporia a máxima de Deleuze: ‘Criar é resistir’. Hair representa um contexto, uma conjuntura de derrubadas de parâmetros ultrapassados e estruturas carcomidas. Maio de 68 foi último grande instante de mobilização de massas e a mobilização era na verdade pelo reconhecimento do indivíduo diante do aparato do Estado, da Igreja, da Universidade ou da Família. O verdadeiro escandalizar, hoje, é não servir ao mercado, ter interesses além do meramente útil e comercial ou simplesmente ler um livro”.
Faça amor, não faça a guerra - Hair estreou, primeiramente, na off-Broadway, em 1967. Somente depois de 45 apresentações foi para o Teatro Biltmore, em 29 de abril de 1968 , onde foi encenada mais 1,8 mil vezes. Na peça original, os personagens ficavam nus para protestar contra todo o tipo de esteriótipo que a sociedade criava. Nus, estavam se libertando de todos os conceitos ultrapassados, de todas as correntes que os aprisionavam ao American way of life.
A história da peça é sobre um grupo de hippies, moradores do East Village de Manhattan, que sintetiza o pensamento e a cultura dos anos 60 e também luta contra o recrutamento militar da Guerra do Vietnã. O grupo faz parte da Era de Aquarius e foca a trajetória da “Tribo”, comunidade hippie onde vivem Claude, Berger e Sheila. Os três lutam contra a convocação de Claude para o Vietnã. Sheila, apesar de apaixonada pelos dois, envolve-se em diversas lutas políticas, em vez de lutar por seus amores.
Os três hippies e toda a comunidade não aceitam o envio de jovens americanos para lutar em um país estrangeiro. Aquele país distante em guerra contra os Estados Unidos nada tem a ver com eles. O governo americano deveria cuidar dos conflitos internos, em vez de mandar jovens para a morte. Resumindo, a guerra consume dinheiro público e vidas humanas.
Além de The age of Aquarius, outra música da peça que ficou conhecida é Let the sunshine in, um protesto contra o mundo capitalista, que declara claramente o espírito contrário à guerra do Vietnã e a política armamentista do governo americano. O álbum com as canções da peça ganhou o Grammy de 1969. Let the sunsghine in, The Age of Aquarius e I got life ainda fazem parte da lista das músicas mais tocadas pela BBC.
Uma nova montagem de Hair foi encenada em 2005, em Londres, mas dessa vez toda a ação foi ambientada na Guerra do Golfo, o que provocou críticas dos mais aficcionados pela peça, que diziam que a nova leitura traía o seu espírito original. Para comemorar o aniversário de 40 anos, o musical vai ser reapresentado de 22 de julho a 17 de agosto no Cetral Park, em Nova York.
Do teatro ao cinema - Em 1979, Hair foi adaptada por Michael Weller, com direção de Milos Forman, para o cinema. O enredo da versão cinematográfica difere do enredo da peça. O roteiro do filme foi baseado no espetáculo musical, porém as duas versões diferem no enredo, na ordem das músicas e na maneira como os personagens são apresentados.
No cinema, Hair conta a história de um jovem de Oklahoma, Claude interpretado por John Savage, que foi recrutado para a guerra do Vietnã. Este jovem é adotado em Nova York por um grupo de hippies com comportamento nada convencional, comandados por Berger interpretado por Treat Williams, que tentam convencê-lo dos absurdos da sociedade da época e da realidade da guerra. Neste ínterim, Claude se apaixona por uma jovem de família rica, Sheila.
As cenas do ideal hippie foram mostradas de forma poética no Central Park. O crítico Rubens Ewald Filho diz sobre o filme de Milos Forman: “É filmado com imaginação e talento, com um elenco nada óbvio, valorizado pela coreografia de Twyla Tharp. Resulta num dos melhores musicais de sua década”.
Existe uma grande diferença entre o final do filme e o da peça. O que faz com que alguns admiradores do espetáculo abominem o filme. No último não há cena de nudez, mas esse é a penas um detalhe da adaptação realizada por Michael Weller. O crítico Rubens Ewald Filho comenta: “Cortaram a cena de nudez do primeiro ato que havia marcado o show no palco, não tem praticamente nu no filme. Mas há outros detalhes que a substituem, como referências a drogas e amor livre que o moralismo atual condenaria”.
Por conter a fórmula trilha sonora impecável, coreografia estimulante, fotografia relaxante e personagens contagiantes, Hair, o filme, recebeu duas indicações ao Globo de Ouro, nas categorias de Melhor Filme/Comédia/Musical e Melhor Revelação Masculina Treat Williams ganhou o prêmio David di Donatello em 1979 na Itália, na categoria de Melhor Diretor em Filme Estrangeiro e Melhor Trilha Sonora também em Filme Estrangeiro foi indicado ainda ao prêmio César, em 1980, na França, na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.
Mas o crítico Rubens Ewald não acha o filme polêmico. “A peça foi em sua época, mas por mostrar gente pelada de frente, principalmente homens, o que era inédito. Mas era um show, alegre, divertido com excelente música e quase nada de história. Se o filme fosse produzido ainda hoje, seria nostálgico.”
O escritor Flávio Amoreira pensa de outra forma. “O cultivo da liberdade em sintonia com a natureza, a embriaguez de todos os sentidos, a exaltação do corpo em todas suas possibilidades erotizantes chocaram pelo veículo: um musical de fácil acesso em conteúdo e forma”.
Ambos concordam quando dizem que Hair não mais causaria impacto na sociedade atual. “Hair não mais escandalizaria, pois seria visto como lírico demais, quase piegas em tempos que transgredir seria buscar ideal igualitário, viver poeticamente ou desnudar-se de alma, já que o corpo desnudo é mercadoria de troca. O que chocava em 1968, hoje é instrumento de compra e venda: sexo e drogas perderam essencial inocência e poder de catarse”, diz Flávio Amoreira.
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