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Bichos - Bichos
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| O prazer de cada manhã
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| As mãos sujas de tinta, o café-da-manhã, o alvorecer... Adoro isso! |
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| Por Ronaldo Andrade |
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Coloco as mãos na jaqueta à procura do maço de cigarros. Deve estar no bolso interno do lado esquerdo, já que, como destro, isso me facilita pegar objetos, tal como os policiais dos filmes antigos que deixavam as armas no lado contrário, para facilitar a empunhadura.
O ponteiro do relógio aponta dez para cinco, acho eu. A dificuldade em precisar a hora deve-se à garoa intermitente que esfria ainda mais o final de madrugada, que molha o mostrador e dificulta a visão. Sim, são dez para cinco. O segundo olhar confirma.
De longe, observo as primeiras movimentações dos funcionários da padaria, onde, em minutos, entrarei para pedir um café, o primeiro de muitos ao longo do expediente. A porta à meia-altura denuncia que logo começarão as atividades. Em frente à padaria, avisto a banca, que, em instantes, também iniciará o trabalho de mais um dia.
Fico tentado a acabar de vez com a aflição e pedir ao jornaleiro o exemplar do jornal. Mas não quero ser chato ele ainda está fazendo a montagem, já que os cadernos vêm separados, detalhe que só conheci após ter trabalhado em uma banca, há anos.
— Bom-dia, aqui está o seu exemplar — diz o jornaleiro, enquanto, distraído, acendo um cigarro. Gentilmente, ao perceber a minha inquietação, decidiu terminá-la.
— Ah, obrigado — respondi um tanto quanto constrangido, entregando-lhe o dinheiro, seguido pelo indefectível “fique com o troco”, que ele modestamente agradeceu com um leve movimento de cabeça.
Finalizada essa etapa, sigo em direção à padaria, que já está aberta. Peço um café com leite acompanhado de torradas, com pouca manteiga por causa do colesterol. Enquanto espero, começo a folhear lentamente o jornal. Os clientes já escolhem os pãezinhos, agora por quilo. “Mais clarinho”, “mais escurinho”, pedem. Imagino o padeiro, no momento da confecção do sagrado alimento, como deve se angustiar para atender gostos tão variados.
Chegam o café e as torradas. Instalado na mesinha de mármore e cadeira acolchoada ao pé da janela, tenho uma ampla visão do que ocorre. E observo com prazer toda a movimentação, prazer que acompanha a leitura do jornal. Isso me faz vir à memória as fotografias em preto-e-branco da década de 1950, em que os leitores mostravam orgulhosos os exemplares, exibindo-os ostensivamente, numa demonstração de “hei, eu leio o Correio da Manhã, O Estado de S. Paulo, O Globo...”
As lembranças me fazem questionar a anunciada morte do jornal. Como é possível? Não consigo imaginar o mundo sem jornal. Excesso de nostalgia, sentimento jurássico? Não, acho que não. Uma pesquisa realizada pela Associação Mundial de Jornais mostra que a circulação cresceu 2,3% no mundo, em 2006, com cerca de 1,4 bilhão de leitores. No Brasil, mais de sete milhões de exemplares foram vendidos diariamente. E a publicidade acompanhou o salto: crescimento de 3,77% no faturamento mundial.
Obviamente, não sou avesso às novidades tecnológicas. São fundamentais na sociedade de informação. Na internet, é extraordinário constatar que, com um clique, salto das páginas do Le Figaro ao New York Times, sem contar as versões eletrônicas dos jornais brasileiros, que me mostram a realidade que mais me interessa.
Talvez a defesa do impresso seja mesmo uma posição romântica, reconheço. Mas o jornal, evidentemente, tem o seu valor, maior aprofundamento das notícias. As gerações mais novas preferem a leitura pelo computador. Entretanto, o jornal ainda é um meio mais prático de transporte, sem contar que a tecnologia digital, embora crescente, ainda não está disponível a todos.
Acima de tudo, além de estar bem informado, acho que o conjunto da obra — jornal, café-da-manhã, o vai e vem das pessoas no amanhecer — é o prazer maior. O cotidiano que se desenrola sob o meu olhar oferece a indescritível sensação de viver, com a companhia do jornal que suja as minhas mãos de tinta. Adoro isso!
Pago a conta e saio silenciosamente do estabelecimento, tão discreto quanto entrei. Vejo que o tempo mudou e agora o sol começa a despontar no horizonte, aquecendo o ambiente – e também a vida – com seus primeiros raios de luz. Olho para trás, despedindo-me do local com um saudoso “até logo”, esperando com igual ou maior ansiedade que o dia passe rápido e chegue a manhã seguinte.
Matéria produzida em 2007
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