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Altamente tóxicos e comprovadamente cancerígenos
Denunciar a produção de fertilizantes a partir de resíduos tóxicos já levou Élio Lopes dos Santos a receber ameças de morte. Em entrevista, ele fala mais sobre seu combate em prol do meio ambiente
Por Érika Aparecida Ribeiro
Fotos: Érika Aparecida Ribeiro
O professor do curso de Engenharia Química da Universidade Santa Cecília, Élio Lopes dos Santos, acusa algumas indústrias de micronutrientes — elementos essenciais ao desenvolvimento das plantas e do solo — de usar resíduos altamente tóxicos na fabricação das matérias-primas que compõem os fertilizantes. “Passaram a usar os resíduos industriais em substituição aos minérios para obter os micronutrientes, mas sem se importar com as altas concentrações de chumbo, cádmio e arsênio, todos comprovadamente cancerígenos”, alerta. Ao denunciar isso em Brasília chegou a ser ameaçado de morte e colocado sob proteção da Polícia Federal. “Esse problema ocorre há pelo menos 20 anos no País, com a conivência das diversas autoridades governamentais”, insiste em dizer. Élio Lopes trabalha há mais de 30 anos na área ambiental. Foi gerente da Cetesb em Cubatão e hoje, além de coordenar a pós-graduação do curso de Engenharia de Segurança do Trabalho da UNISANTA, é consultor ambiental e assistente técnico do Ministério Público.

Na entrevista a seguir, ele fala sobre o que considera o pior caso de poluição já vivenciado ao longo de sua vida profissional.

Quando o senhor percebeu que havia algo de errado com as fábricas de fertilizantes?

Élio Lopes dos Santos — Foi quando eu ainda estava na Cetesb. Junto com alguns colegas, percebi que alguma coisa de errado estava ocorrendo com os efluentes das indústrias de fertilizantes. No controle da poluição do ar, a Cetesb determinava a quantificação das concentrações de material particulado e de alguns gases da chaminé, não se atendo à qualidade desses particulados, até porque jamais iria imaginar tal desconformidade. Mas em um determinado momento da década de 1980, aleatoriamente, optamos por verificar também a qualidade desse material particulado.

E qual foi o resultado?

Élio Lopes dos Santos — Para a nossa surpresa, deparamos com concentrações altíssimas de metais pesados tóxicos como chumbo, cádmio, alumínio, mercúrio e até mesmo produtos organoclorados, que são sintetizados em laboratório pelo homem. Tudo isso nos chamou atenção, pois isso se diferenciava muito dos elementos basais, normalmente encontrados na natureza, como é o caso da matéria-prima utilizada na fabricação de fertilizantes fosfatados. Por exemplo: na rocha fosfática, utilizada para fabricar o fertilizante fosfatado superfosfato, encontramos uma concentração máxima de 38 ppm 38 parte por milhão de chumbo. No superfosfato, misturado com micronutrientes, encontramos concentrações superiores a 50000 ppm. Veja que existe uma distância muito grande em relação ao elemento basal e era isso que nós encontrávamos na saída das chaminés das indústrias de fertilizantes que utilizavam micronutrientes. Alem disso, essa contaminação também refletia nas águas e sedimentos dos rios e no estuário da Baixada Santista.

Para o nosso leitor entender: o que são micronutrientes?

Élio Lopes dos Santos — Os micronutrientes são elementos essenciais ao desenvolvimento das plantas. Entre os principais estão o zinco, o cobre e o manganês. Todos eles estão presentes na natureza, mas em teor insuficiente para garantir alta produtividade à agricultura. Por essa razão, são elaborados industrialmente e incorporados aos fertilizantes fosfatados. Assim, os maiores clientes das fábricas de micronutrientes são as indústrias de fertilizantes fosfatados. Até a década de 1970, os micronutrientes eram obtidos diretamente de minérios encontrados na natureza. Embora esses minérios também contenham metais pesados tóxicos, o processo de beneficiamento desse material era menos questionável do ponto de vista ambiental, pois os níveis de contaminantes eram muito baixos. Porém, na busca de uma solução mais viável economicamente, as empresas passaram a utilizar os resíduos industriais em substituição aos minérios para obter os micronutrientes, sem se importar com as altas concentrações dos elementos tóxicos — primordialmente chumbo, cádmio e arsênio —todos comprovadamente carcinigênicos. Para agravar essa situação, grande parte desses resíduos industriais também contém poluentes organoclorados, como hexaclorobenzeno, dioxinas e furanos, todos altamente cancerígenos.

Quais foram as soluções tomadas nesse caso?

Élio Lopes dos Santos — Na ocasião fizemos um parecer e o encaminhamos para a diretoria de controle da Cetesb, que não tomou providências. A Cetesb alegou ser competência do Ministério da Agricultura. Mas ocorre que o Ministério da Agricultura só controlava os valores dos elementos constantes no produto final, com o objetivo de proteger o produtor. Como se tratava de burla da matéria-prima, cabia à Cetesb cassar a licença de funcionamento das indústrias de micronutrientes. As licenças emitidas pela própria Cetesb são claras em relação à matéria-prima utilizada nas unidades de fertilizantes. Ou seja, as empresas não foram licenciadas para usar resíduos industriais perigosos e sim minérios. Portanto, no seu dever de ofício, caberia à Cetesb suspender a licença das indústrias de micronutrientes. O órgão, entretanto, não tomava providências e o comprometimento da sua direção com as indústrias de micronutrientes ficou patente quando, em 2000, quis estabelecer um critério para regulamentar o uso de resíduo perigoso pó de aciaria e fundição como matéria-prima para as indústrias de micronutrientes.

O que a legislação estadual reza a respeito disso?

Élio Lopes dos Santos — A legislação ambiental no Estado de São Paulo proíbe depositar, dispor, descarregar, enterrar, infiltrar ou acumular no solo resíduo, em qualquer estado da matéria, desde que poluentes. Neste contexto, a Cetesb exige que as empresas dêem uma destinação adequada aos resíduos, por meio de tratamento e disposição em aterros próprios, projetados de forma segura a evitar contaminação do solo e das águas subterrâneas. Assim, diante dessa legislação é inadmissível que se permita que as indústrias misturem resíduos aos fertilizantes e de forma diluída depositem, disponham e infiltrem no solo agriculturável. É um contra-senso.

Essa resolução da Cetesb foi parar no Ministério Público, não?

Élio Lopes dos Santos — Sim. Nessa ocasião, já aposentado pela Cetesb e, pertencendo aos quadros do Ministério Público, coube-me analisar o parecer da própria Cetesb. Fazendo um estudo mais aprofundado descobri que as empresas queriam utilizar lama de aciaria e de fundição como matéria-prima para a fabricação de micronutrientes. O que é pior: a Cetesb sequer analisou o que esses resíduos continham a Cetesb utilizou nessa resolução apenas os dados de análises fornecidos pelos interessados, ou seja, a indústria de micronutrientes. É como se a raposa tomasse conta do galinheiro. O parecer do Ministério Público levantou a possibilidade da existência nesses resíduos de elementos tóxicos, inclusive dioxina e furanos, o que mais tarde veio a se comprovar. Nesse parecer ficou comprovado que a diretoria da Cetesb estava equivocada. Suspenderam esse projeto e comunicaram às empresas para não utilizarem esses resíduos como matéria-prima na fabricação de micronutrientes. Mas na prática não fiscalizavam e as empresas continuaram utilizando resíduos perigosos.

E hoje, as empresas pararam de utilizar estes resíduos industriais para a fabricação de micronutrientes?

Élio Lopes dos Santos — Em 2000, foi realizado um levantamento de algumas empresas de micronutrientes e de seus clientes, as indústrias de fertilizantes. Coletaram-se amostras das empresas de Cubatão e de Paulínia, confirmando que os micronutrientes utilizados pelas indústrias de fertilizantes continuavam apresentando altas concentrações de chumbo, cádmio e organoclorados. Ou seja, continuavam utilizando resíduos perigosos. Em síntese, o problema vem ocorrendo há mais de vinte anos no País, com a conivência das diversas autoridades governamentais.

E como os resíduos perigosos atingem a população?

Élio Lopes dos Santos — Existe um fluxo de contaminação, que se inicia pelo operário da indústria de micronutrientes e fertilizantes, passa pela população do entorno dessa produção, e depois pelos transportadores, o agricultor, os usuários dos mananciais contaminados e, finalmente, os consumidores de alimentos contaminados. É importante ressaltar que até os funcionários das indústrias de fertilizantes macronutrientes, não tinham conhecimento de que os micronutrientes por eles manuseados e incorporados aos fertilizantes eram fabricados a partir de resíduos perigosos. Pelo menos hoje os dirigentes dessas empresas já conhecem o problema.

Onde as indústrias de micronutrientes vão buscar esses resíduos?

Élio Lopes dos Santos — Percebemos que além da utilização de resíduos que vinham das indústrias nacionais, em especial das indústrias de fundição, existia um componente ainda mais perverso, que era a importação de resíduos industriais perigosos. Ou seja, nos países de origem Espanha, Inglaterra, Estados Unidos e México, o gerador do resíduo teria de pagar para dispor esse material em um aterro. Para se livrar do custo disso eles exportam para o Brasil, disfarçado de minério de zinco e de manganês. As nossas empresas, mesmo conscientes desse risco à saúde pública, utilizam esses resíduos como matéria-prima para a fabricação de micronutrientes.

Qual foi a atitude do Ministério Público? Os portos brasileiros possuem alguma forma de controle para evitar a entrada destes materiais perigosos?

Élio Lopes dos Santos — Os ministérios públicos estadual e federal se uniram no combate a esse crime ambiental e, ao fecharem o cerco no Porto de Santos, os importadores passaram a utilizar outros portos. Então, o Ministério Público entrou em contato com a Receita Federal para bloquear a entrada desses produtos em todos os portos do Brasil.

Essa importação pode ser considerada lavagem de dinheiro? Quais os prejuízos para os cofres públicos?

Élio Lopes dos Santos — Sim, fica a impressão de tratar-se de lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Por isso que o esquema é mais perverso do que a gente imagina. O poluidor ganha diversas vezes e mais: cada vez que o poder público consegue bloquear uma carga de poluentes, ainda tem o custo da disposição deste material em aterro de resíduos perigosos.

O senhor não ficou com medo de fazer estas denúncias? Já recebeu ameaças?

Élio Lopes dos Santos — Não se trata de denúncia, mas sim de uma grande investigação da qual participo e que já extrapolou a questão ambiental. Fiquei receoso, pois num determinado momento dessa investigação, após uma reunião que tive em Brasília com representantes de vários ministérios, ao chegar à minha residência, em Santos, recebi uma carta anônima com o seguinte texto: “Dr. Élio, pare de mexer com o lixo ou serás parte dele!”. Posteriormente, recebi uma segunda, cujo texto só é de conhecimento da Polícia Federal, responsável pela perícia da carta. Fui chamado a Brasília e, depois de uma reunião na Agência Brasileira de Inteligência Abin, fui encaminhado para uma reunião com a ministra Marina Silva. Na ocasião, entreguei pessoalmente os laudos e os demais documentos sobre o caso. Ela ficou grata, encaminhou o caso da ameaça ao Ministério da Justiça e durante um bom tempo fiquei sob proteção da Polícia Federal.

Pelo que se pode notar, o caso da regulamentação do uso de resíduos industriais ainda vai longe. O que está sendo feito para controlar o mau uso?

Élio Lopes dos Santos — Após o Ministério Público ter chamado a atenção da Cetesb, a presidência do órgão encaminhou o caso para a Associação Nacional da Empresas de Meio Ambiente, que por sua vez, o encaminhou para o Conselho Nacional do Meio ambiente Conama. Até a presente data o Conama não se manifestou. Paralelamente, o Ministério Público vem acompanhando os trabalhos da Cetesb que, na fase de renovação da licença, proibiu que essas indústrias operem com resíduos industriais na fabricação de micronutrientes.

Qual a postura do Ministério da Agricultura?

Élio Lopes dos Santos — A pior possível. Criou padrões para os elementos tóxicos como chumbo, cádmio e arsênio no produto final, superiores às concentrações desses elementos encontradas em determinados resíduos industriais. Ou seja: está fazendo de tudo para viabilizar e facilitar a diluição e o uso de resíduos industriais. Chegou até a criar uma definição diferente para esses resíduos chamando-os de “materiais secundários”.

O que o senhor acha disso?

Élio Lopes dos Santos — Há necessidade de um maior empenho do governo federal, seja através do Ministério da Saúde, com interferência junto ao Ministério do Meio Ambiente, visando impedir o uso de resíduos industriais como matéria-prima na formulação de micronutrientes. Os órgãos governamentais devem zelar para que haja garantias efetivas e segurança técnico-científica no sentido de que os solos agriculturáveis brasileiros não recebam cargas de poluentes tóxicos que possam afetar negativamente o meio ambiente e a saúde pública. Por fim, resta ainda a necessidade de aprofundar a investigação da matéria no âmbito da saúde do trabalhador rural e industrial, o que poderá ser feita com a inclusão do Ministério Público do Trabalho nesta discussão.

Há algum tempo se discutiu a respeito da reciclagem destes resíduos industriais para o seu reaproveitamento. Isto poderia ser utilizado com uma alternativa viável?

Élio Lopes dos Santos — Na verdade não há reciclagem. O que é feito hoje é uma diluição grotesca.

O que poderia ser feito?

Élio Lopes dos Santos — Existe a possibilidade do uso de resíduos industriais como matéria-prima para formular micronutrientes, desde que haja um processamento desse resíduo, removendo os poluentes tóxicos que não são de interesse da agricultura. Esse é o ponto central da questão. Mas poucas empresas comungam com essa alternativa, pois não querem ter os custos dessa operação. Costumo dizer aos alunos que a única empresa que não produz sobra de resíduo é a de micronutrientes, pois todo o resíduo gerado é incorporado ao produto final e vendido, tendo como destino final o solo agriculturável.

Os aterros onde são depositados estes resíduos são realmente confiáveis?

Élio Lopes dos Santos — O aterro de resíduo, desde que bem projetado, construído, operado e dotado de sistemas de monitoramento, ainda é a melhor solução para confinamento desses resíduos. Caso haja alguma infiltração com fuga de poluentes será detectada e corrigida. Todavia, entendo que a melhor alternativa seria o beneficiamento desse resíduo com o aproveitamento dos elementos de interesse da agricultura e a remoção dos elementos tóxicos para disposição em aterros de resíduos industriais. O processo atual, utilizado pelas indústrias de micronutrientes, não deve ser aceito pelas autoridades ambientais. Trata-se de diluição de resíduo, resultando na transferência de toda carga desses poluentes ao meio ambiente. Gradativamente, porém de forma inexorável, vai ocorrer uma disseminação desses poluentes tóxicos nos diversos compartimentos ambientais, com sérios prejuízos ao meio ambiente e à saúde pública, podendo inclusive, num futuro não muito distante, inviabilizar nossas exportações.

Matéria produzida em 2006



Orientação: Elaine Saboya