Vivia atrás das balas que os fregueses recebiam de troco nos
supermercados e abandonavam ali mesmo nos caixas. Ou daquelas que os
freqüentadores de cafés ganhavam de brinde e nem retiravam dos
pires. Umas traziam mensagens românticas nas embalagens, outras eram
mais sisudas. Pouco lhe interessavam essas características, porque o
papel nem chegava a ir para um cesto. Ficava mesmo pelo chão das
ruas que percorria na sua catança instigante. Até fazia apostas com
os moleques da turma sobre a quantidade que encontraria nos
estabelecimentos situados no percurso da escola para casa. Na volta
ficava mais livre, sem se importar com horário. Na ida, se houvesse
atraso, a professora enchia o saco e ainda dizia que as balas eram
um inimigo cruel porque atacavam os dentes com cáries.
Mas quando garimpava balas, queria mesmo era o doce, o sabor de
leite, de açúcar, de mel, de coco, de chocolate... Podia até ser de
hortelã, apesar do ardor . Só não buscava as amargas de café ou esse
meloto incômodo que agora lhe lambuzava o rosto, lhe tingia os
dentes e deixava a boca com esse travo nojento. Nunca procurou esse
visgo que agora tomava seus olhos, turvando o caminho de casa e
retardando o andar das pessoas, como se elas fizessem parte do
replay de um gol em câmera lenta.
Gostava de balas e de bolas. Das de gude nem adiantava gostar,
porque o que aprendera com o pai ninguém mais sabia fazer. Aquele
manejo de dedos que ele tinha para matar as do adversário nunca mais
conseguiu ver, depois que ele morreu no meio de um fogo cruzado,
quando subia o morro, num início de noite de uns quatro anos atrás.
Na compreensão dos seus 10 anos de vida, o futuro dependia da
habilidade que os pés tivessem para dominar a de capão. Por isso,
todas as tardes, lá pelas tantas, se juntava com a molecada da rua e
partia para um campo de várzea, onde treinava seu ataque, na
esperança de um dia defender o seu time do coração. A mãe já lhe
prometera que, se passasse para a 5a. série, podia contar que iria
ver, nas arquibancadas do Maracanã, o Romário defender o Flamengo,
se até lá ele não fosse comprado por um time estrangeiro.
Só um prazer de moleque que agora não compreendia de onde vinha esse
zumbido repetido e o queimor na cabeça. Que rodopio era esse, de
pipa fisgada em cerol, que aproximava as pessoas e as afastava de
repente, numa ciranda tão bêbada? Por que havia tantos gestos e
movimentos de bocas e nenhum som?
Chamava-se Vivier, um nome em desacordo com o sobrenome comum. Não
se pronunciava a última letra e a penúltima era fechada, como se
vestisse um chapéu daqueles bem circunflexos. A explicação ouvira do
avô paterno, autor daquela esquisitice, por causa de um francês a
quem ele prestara serviços nos tempos em que trabalhou em um
cassino. Velho elegante o avô, que arriscava uns passos de dança,
vivia sorrindo à toa e morreu dormindo, na boa, um ano antes do
filho tombar com um tiro no peito, no meio daquele fogo cruzado de
uns quatro anos atrás.
Mas as pessoas em volta não conheciam sua história, nem sabiam o que
fazer para evitar que em instantes desse com a cara no chão. Melhor
era tentar chegar perto do muro ou do tronco de uma árvore. Também
não podia esquecer de comprar os dois retroses de linha, uma
vermelha e outra azul, senão a mãe ia ficar brava, porque tinha que
terminar a encomenda de costura. Mas as pernas não passavam de dois
fios de macarrão cozido. Como é que iria jogar lá pro final da
tarde? Os moleques iam pensar que estava com medo do Requeijão, o
zagueiro do outro time, só porque o atrevido cheirava cola e
traficava a poeira. Deixava essas coisas pra eles que eram da mesma
laia e se entendiam. Não via graça em nenhum desses bagulhos. Mesmo
quando o Tijolo lhe ofereceu um troco para levar uma encomenda no
Morro do Chapéu. Não foi que não era trouxa e a mãe já cansou de
falar que não quer ganhar dinheiro fácil e perder filho pra droga. O
que tirava com as costuras ainda estava dando pro gasto. E por falar
em dinheiro, as moedas para pagar as linhas estavam no bolso
esquerdo. Precisava ter cuidado para não perder no meio dessa gente
estranha velando sua tontura.
Agora já não via mais nada. Nem sentiu quando o corpo tombou de uma
vez no chão. Tampouco ouviu as sirenes da Polícia e do resgate dos
Bombeiros, que atraíam ainda mais uma multidão curiosa e
desnorteada, com a constância de cenas daquele tipo. Um soldado o
envolveu num cobertor, percebendo seus calafrios, e colocou-o na
maca junto com a mochila da escola. Os procedimentos de primeiros
socorros eram os mesmos que ele já vira fazer em outras tantas
pessoas. Agora era a sua vez de ser arrancado dos trilhos e jogado
num roteiro sem nexo e sem autoria. Mas nada disso lhe doía, por
obra da inconsciência.
Quando a mãe o encontrou, com a mesma roupa suja de sangue, os
cabelos num grude só e moscas pousando na testa, ele tinha um braço
estirado por onde tomava soro. Horas tinham passado e a noite já
começava, como a pelada contra o time do Requeijão. Ninguém sabia
informar se a operação ainda seria naquele dia, porque não havia
vagas e o jeito era esperar ali mesmo no corredor do hospital. O
desespero a dominou, mas a enfermeira pediu que tivesse calma. Seu
drama era mais um. Casos iguais ao de seu filho ocorriam
diariamente. Ela não via pela televisão? Era como uma guerra civil,
ainda acrescentou a enfermeira, antes de seguir adiante, fazendo-a
lembrar-se da cena do filme que ela simplesmente chamava de “O Vento
Levou” , porque não via sentido em dizer o nome com um “e” sobrando
bem no começo. Gente e mais gente estropiada, cheia de dor e sem
remédio e só um velho médico para atender. Seu Vivier nem com isso
contava. Já fazia um tempo que estava ao lado do filho e nenhum
doutor tinha passado para lhe dar um conforto.
Só Deus podia ajudar. Não era possível que uma criança saísse para a
escola e não tivesse certeza de que iria retornar. Já com o marido
foi o mesmo sobressalto. Agora não era justo que tivesse que passar
por um sofrimento igual. Onde é que estavam os políticos naquela
hora? E o dinheiro que descontavam cada vez que trocava um cheque do
pagamento das costuras? E a contribuição do INSS? Tanto pagar e
pagar e agora tinha que ver o filho morrendo à mingua sem ninguém
pra socorrer? Isso não estava direito! Só dando uma de louca e
começando a gritar. Quem sabe a televisão aparecesse e eles tivessem
medo e viessem dar solução pro caso de seu menino infeliz.
Impaciente de tudo, passou a entrar e sair das salas que davam para
aquele corredor onde jogaram seu filho e tantos outros cidadãos, nas
costas de quem eles deviam dar tapinhas em tempos de eleição. Nem
uma alma sequer. Decerto por aquelas horas, os médicos estavam
jantando, assim como o prefeito, o governador e o presidente. Quem
iria se importar com o tamanho de sua dor? Se seu menino estava com
a cabeça aberta e cumpria uma pena por um crime que não cometeu? Os
verdadeiros bandidos não estavam na cadeia, mas Vivier jazia preso
naquela agonia sem fim.
Só Deus daria um jeito. Se ele não desse, ninguém adivinharia a
impotência que lhe dilacerava as entranhas. Pobre não nascera pra
viver . Não podia ser verdade a crença de sua vizinha, de que a
única saída é matar pra não morrer. Não foi o que planejou no dia em
que o filho nasceu. Alguém haveria de ter um pouco de compaixão. Um
inocente morrer, como o último dos miseráveis, só mesmo num país sem
leis e sem dignidade, onde o dinheiro dos pobres ajuda a proteger os
ralos da safadeza. Nossa Senhora valesse, que o coração de uma mãe
não suportaria ver aquela heresia.
Tudo o que seu filho queria, pensou, acariciando o bracinho livre da
agulha, era jogar futebol, fazer sucesso e ganhar dinheiro. E assim
ia poder ajudar uma porção de criancinhas e comprar um monte de
balas. Do sabor que preferisse. Bala de coco, de alfenins, de leite,
de chocolate... Ia morar no estrangeiro, longe desses tiroteios.
Nunca mais precisaria esperar tanto por um médico e nem testemunhar
que, quando um deles chegasse, já não tinha mais o que fazer, como
agora, que ele só pôde perguntar se fora uma bala perdida.
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